sábado, 22 de novembro de 2008

É o Cristianismo Uma Religião

1. Introdução

"A filosofia é o pedagogo que conduz a alma até o Cristo". Esta célebre frase, foi dita por Clemente de Alexandria, um filósofo e teólogo de grande prestígio e é considerada a sua máxima. Diante desta afirmativa surge a seguinte pergunta: É o cristianismo uma filosofia?

Analisaremos o pensamento de Clemente de Alexandria a respeito deste tema, e encontraremos resposta para tão dialética questão. É possível conciliar no pensamento de Clemente a Fé e a Razão? No decorrer deste estudo, descobriremos o pensamento desta tão importante figura da história do pensamento filosófico-Cristão.

2. Visão Panorâmica

O cristianismo romano atribuía importância maior as questões relacionadas a fé; porém entre os pais da igreja oriental, cujo centro era a Grécia, o papel desempenhado pela razão filosófica era muito mais amplo e profundo.Em meados do século II, os cristãos passaram a escrever para justificar sua obediência ao Império Romano e combater as idéias gnósticas, que consideravam heréticas. Os principais autores desse período foram são Justino mártir, professor cristão condenado à morte em Roma por volta do ano 165; Taciano, inimigo da filosofia; Atenágoras; e Teófilo de Antioquia. Entre os gnósticos, destacaram-se Marcião, que rejeitava o judaísmo e considerava antitéticos o Antigo e o Novo Testamento.
No século III floresceram Orígenes, que elaborou o primeiro tratado coerente sobre as principais doutrinas da teologia cristã e escreveu contra Celsum e sobre os princípios; Clemente de Alexandria, que em sua Stromata expôs a tese segundo a qual a filosofia era boa porque consentida por Deus; e Tertuliano de Cartago. A partir do Concílio de Nicéia, realizado no ano 325, o cristianismo deixou de ser a crença de uma minoria perseguida para se transformar em religião oficial do Império Romano. Nesse período, o principal autor foi Eusébio de Cesaréia, o qual gozava de grande afeição por parte do imperador. Dentre os últimos gregos destacaram-se, no século IV, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa e João Damasceno.

3. Clemente de Alexandria

Grego de uma família de libertos, nascido em torno do ano 180, no paganismo, Tito Flávio Clemente (mais conhecido por Clemente de Alexandria) encontra a doutrina cristã na juventude e a ela se converte de maneira profunda. Durante anos seguidos, em incessantes viagens da Grécia para a Síria e da Palestina para o Egito, este homem, que veio a ser um ícone da Igreja primitiva, procurou penetrar melhor na doutrina de Cristo, ouvindo atentamente a cristãos e sábios, adquirindo e desenvolvendo conhecimentos.

Dentre esses sábios houve um em especial que lhe chamou a atenção, fazendo do alexandrino seu seguidor (pela convergência de idéias). Esse homem chamava-se Panteno (tido como detentor de um conhecimento "superior"), de quem Clemente se tornou aluno, assistente e que, mais tarde, veio a superar aquele que foi conhecido como “abelha da Sicília”. Já no ano 200 Clemente teria ido além dos ensinamentos do seu tutor.

Sendo padre, mas sem obrigações paroquiais (não era muito afeito a celebrações), Clemente de Alexandria dedica-se inteiramente ao ensino cristão – catequese. Ao mesmo tempo em que fala, segue escrevendo; sempre infatigável, sempre profundo, embora por vezes caótico e difuso na sua linguagem.

Dono de um coração largo, espírito de uma cultura enorme, inteligência do mais vasto alcance, que o seu entusiasmo pela doutrina evangélica não impediria de se abrir a tudo (nem mesmo à tão atacada cultura pagã, em especial no que diz respeito à filosofia dos gregos). Em muitas passagens de suas obras sentimo-nos deveras comovidos: quando fala da virtude e da infância tão dedicadamente, a questão do casamento, e quando se refere a problemas que são sempre do maior interesse; como o das responsabilidades do dinheiro e o da salvação dos ricos (de grande dificuldade), dentre vários outros também de suma importância para nosso conhecimento e para a nossa religião como hoje a temos.

Quando a perseguição aos cristãos, promovida pelo imperador Sétimo Severo, fecha, por algum tempo, sua escola, refugia-se na Capadócia, junto de um de seus antigos alunos, onde continua seu fatigante trabalho. Clemente morre em 216, após muito ter contribuído para o desenvolvimento, e mesmo para o surgimento do que foi denominado “cristianismo primitivo”

4. Religião e Filosofia

Muitos são os estudiosos que apresentam o cristianismo do alexandrino como sendo uma filosofia. Embora guarde certo receio frente aos perigos que a cultura mundana oferece, Clemente designa a filosofia como importante fonte para a aquisição de uma fé melhor fundamentada. A filosofia grega é vista aqui como um todo, e não haveria o conhecimento, platônico, o aristotélico e tudo mais; apenas a totalidade. Daí, podemos lançar a importância da unidade, também, para a religião.

Fé e razão encontram-se interdependentes, onde se a fé não se apresenta como simples demonstração da razão, não pode se constituir, também, em algo que a negue; existe complementaridade. Deve-se buscar uma fé "sincera", através da Lei, da obediência e de uma vida reta em Cristo.

Como legítimo representante dos primórdios do Cristianismo, Clemente de Alexandria prega muito a importância da religião e a necessidade de que o povo a compreenda, para que ele adquira boas e corretas palavras que vão norteá-lo rumo à salvação perante Cristo.

Altamente influenciado pelos ideais neoplatônicos, o alexandrino não vê, como outros padres do período, apenas aspectos maus na cultura pagã. É bem o contrário, o conhecimento grego vai justamente facilitar que as pessoas compreendam melhor os ensinamentos do Senhor. Clemente chega a atribuir grande importância à filosofia, a tal ponto de compará-la à Bíblia, em termos da justificação que era lançada sobre gregos e hebreus, respectivamente. Há a valorização da filosofia sobre as demais ciências.

Para Clemente, havia "níveis" de fé, e as pessoas poderiam ser "fiéis simples" ou com um grau maior de elevação. O grande objetivo do alexandrino era o de fazer surgir uma ciência da religião, tendo a fé como critério racional de juízo, de onde surgiriam os gnósticos – "cristãos superiores" – que associavam conhecimento racional às palavras sagradas. Clemente via a importância de que fosse significativo o número de fiéis gnósticos, mas sabia da dificuldade desse acontecimento.

Em suma, o gnóstico seria "um cristão ideal, que alcançou a ciência e vida espiritual perfeitas, na medida que podem ser alcançadas neste mundo"; apenas o gnóstico seria capaz de comunicar a doutrina verdadeira sem distorcê-la; exatamente pelo fato de conhecê-la de forma mais profunda. A fé simples é aquela que crê apenas no que diz as Escrituras, sem nenhuma atividade de investigação.

A filosofia, ou qualquer outra forma de conhecimento, vem a ser útil para se ter uma fé mais segura, mais forte; para que se possa distinguir com toda certeza o bem e o mal. Através da filosofia, o espírito humano teria maior predisposição para entender e conhecer melhor as coisas divinas. Associando-se à filosofia grega, o Cristianismo proposto por Clemente faria, agora, de aliado um antigo inimigo (representante fundamental da cultura pagã).

A defesa da religião frente aos ataques dos hereges e dos sofistas é também fundamental na obra do padre cristão. A sofística, através do seu forte discurso, denigre o verdadeiro em função de algo falso (poder de persuasão); é uma "má arte" no entender do alexandrino. Os sofistas seriam “lobos saqueadores”. O padre alexandrino não admite que a doutrina sagrada seja posta em comparação. Deve-se evitar as palavras desnecessárias. Na sua tarefa de persuasão, a sofística impediria o desenvolvimento do conhecimento a partir das próprias pessoas; elas seriam, assim, guiadas pelo discurso de outrem, onde não haveria espaço para a livre reflexão.

Mesmo entendendo a necessidade de não deixar de lado a filosofia, é importante ressaltar que as palavras santas são bastante superiores ao conhecimento dos gregos. Ou seja, a religião pode sobreviver sem a filosofia (que é um catalisador, uma facilitadora da religião), mas o contrário não pode ocorrer. A junção entre a tradição humana (filosofia) e a divina (fé) seria, desse modo, de dupla utilidade, tanto para a religião como para a filosofia. Por fim, temos que a fé seria, também, um filtro para a entrada das palavras sagradas. Seria um subsídio necessário para a compreensão desses conhecimentos: "Se não credes, não compreendereis" .

5. Um Grande Centro Cristão: A Escola de Clemente

Num momento em que a literatura pagã vai sofrendo um período de forte crise, surge a inteligência da Igreja, através, principalmente, dos escritos dos padres. Os dois maiores centros de onde emanavam as idéias cristãs no século III eram o Egito e a África. E dentre os nomes de maior destaque está o de Clemente de Alexandria.

A título de curiosidade, Alexandria era uma cidade imensa, das maiores do mundo no período, aglomeração em constante crescimento, cidade de muitas morais, várias religiões. A inteligência era ali muito estimada e dispunha de inumeráveis instrumentos de trabalho: Museu, Biblioteca, Zoológico e tudo mais. Ali se encontrava um clima excitante para o espírito, uma terra de eleição para todas as tentativas sincretistas, e para todas as heresias. Por volta de 200, Alexandria era o centro do aprendizado cristão e gnóstico; o grande cérebro (o ponto de convergência) do mundo ocidental, era onde tudo fluía muito rapidamente. O capitalismo há muito se instalara nesta cidade.

No século II a fama da cidade torna-se ainda maior. Ao lado das escolas dos filósofos, fundara-se uma instituição "análoga à de São Justino em Roma", uma didascália cristã. Essa escola era, ao mesmo tempo, uma universidade e um cenáculo: muitas matérias, poucos alunos e também poucos mestres. Clemente foi o primeiro desses chefes da escola cristã. Alexandria situada no Egito, tornara-se no século III, a então capital do Cristianismo e o mestre Clemente seu principal nome.

6. A Filosofia Grega e o Cristianismo

A filosofia grega apresentou pontos de notável afinidade com o Cristianismo. No que diz respeito à contemplação o Cristianismo trouxe elementos inexistentes na filosofia grega. Não obstante, cabe a pergunta: O que há de comum quanto à contemplação entre a filosofia grega e a tradição cristã?

Com tantos pontos de afinidade entre filosofia grega e Cristianismo seria de se esperar um acentuado interesse dos gregos pelo Evangelho e dos cristãos pela filosofia grega. Tal não foi o caso histórico, entretanto, pelo menos no século I.

Jesus durante a sua vida preocupou-se em ensinar principalmente ao povo judeu; somente após sua ressurreição mandou que seus apóstolos pregassem o Evangelho a todas as nações. Apesar disso o Evangelho de João narra um encontro entre Jesus e alguns gentios, provavelmente gregos, de passagem por Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa, que manifestaram aos apóstolos seu desejo de ouvirem falar a Jesus; Jesus concordou, mas o Evangelho não narra o sucedido depois do encontro.

Depois da ressurreição do Cristo, a primeira pregação do apóstolo Paulo em território grego, no Areópago de Atenas, não correu conforme a expectativa. O discurso foi interrompido, e enquanto uma parte dos ouvintes zombava do apóstolo, outros, mais educados, diziam que um dia qualquer talvez estivessem dispostos a ouvir o restante.
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O que provavelmente deve ter acontecido foi que Paulo não teve a oportunidade de se encontrar com verdadeiros filósofos, mas sim com gregos de cultura média que tinham alguma noção do que seria a filosofia mas não viviam de fato do seu espírito. Pois, na verdade, uma centena de anos depois, o que a história registra são acontecimentos bastante diversos. No século II iniciaram-se uma série de conversões, algumas delas famosas, de filósofos gregos para o Cristianismo, não pouco favorecidas justamente pela afinidade existente entre a filosofia e o Evangelho.
Alguns destes filósofos convertidos são contados hoje entre os santos padres dos primórdios do Cristianismo, e deixaram escritas coisas admiráveis sobre o caráter da filosofia grega, que chegariam a surpreender diante das palavras do apóstolo Paulo aos Coríntios, se não considerássemos o contexto diverso que circundava estes escritores.

Um deles, para dar um exemplo, foi o já referido Clemente de Alexandria, filósofo convertido ao Cristianismo no século II por Panteno, outro filósofo também convertido ao Cristianismo; os escritos de Clemente, ao mesmo tempo que nos transmitem a impressão de estarmos diante de um homem extraordinariamente sábio, nos revelam alguém dotado de uma sinceridade de criança. No início de sua obra mais profunda, o Livro das Tapeçarias, Clemente de Alexandria deixou escrito o seguinte:

"Antes do advento do Senhor, a filosofia foi necessária aos gregos para a justiça, e ainda hoje lhes é útil para a piedade.
Deus é a causa de todos os bens; de alguns bens Ele é causa de modo principal, como do Velho e do Novo Testamento; de outros bens Deus é causa por conseqüência, como o foi no caso da filosofia.
Não é inverossímil que Deus tenha dado a filosofia aos gregos antes que os tivesse chamado (ao Evangelho pela pregação dos apóstolos), pois a filosofia ensinou aos gregos como se fosse um pedagogo, assim como a Lei (de Moisés) ensinou os judeus, preparando-os para (o advento de) Cristo.
De fato, a filosofia preparou para os gregos o caminho que o Cristo tornou uma realidade perfeita". [1]

Além da conversão de filósofos gregos ao Cristianismo, outro fenômeno comum, a partir do século III, foi o interesse de cristãos pela filosofia grega. Este foi o caso de Orígenes, filho de mártires cristãos, educado no Evangelho desde o berço. Ao atingir dezoito anos, o bispo de Alexandria confiou a Orígenes, em plena época de perseguições, a direção da escola catequética da cidade, que vinha sendo regida até então por Clemente de Alexandria, este mesmo cujo livro acabamos de citar. Para poder dirigir esta escola de catequese na cidade que era então a capital cultural do Império Romano, além de se aprofundar no conhecimento das Sagradas Escrituras, Orígenes aprendeu Hebraico e estudou com filósofos famosos. [2]

Num contexto como este, não seria para se admirar que os cristãos começassem a descrever realidades do Evangelho com termos ou modos de expressão tomados emprestados à filosofia grega. Tal foi o caso da contemplação.

Os filósofos gregos designavam a contemplação com a palavra teoria, por oposição a práxis, ou ação. A vida contemplativa era, pois, chamada entre os gregos de vida teórica, por oposição à vida ativa, ou vida prática. A significação original da palavra teoria provém de um verbo grego que significa ver; daí provém também o nome Deus, que em grego se diz Teos, e significa "Aquele que vê".

7. Considerações Finais

De importância fundamental nos primórdios do cristianismo, colaborando para sua fixação, Clemente atuou tanto na difusão quanto na defesa dos conhecimentos cristãos, da doutrina de Cristo. Ao mesmo tempo em que prega a necessidade de todas as pessoas se instruírem no conhecimento religioso, visando a busca da única Verdade, o padre alexandrino guarda para si informações muito preciosas; para que não caiam em "mãos erradas", ou seja, dos inimigos da Igreja; onde se destacam, principalmente os sofistas.

A associação da filosofia pagã aos ideais cristãos acontece na obra Clementina, tendo ele nascido no paganismo e se convertendo à religião cristã. Clemente destacou a grande importância da filosofia no cristianismo, entendendo ser mister o fato do pensar a respeito do cristianismo. Não se trata de fazer do cristianismo uma filosofia, mas, de através da filosofia, entender o cristianismo na sua “plenitude”.

8. Referências Bibliográficas

ALEXANDRIA, Clemente de. Stromata de notas Gnósticas segundo a Verdadeira Filosofia. Editorial Ciudad Nueva. Madrid, 1996.

ROPS, Daniel. História da Igreja de Cristo.

MAIA, Márcia. Evangelhos Gnósticos. Editora Mercuryo. São Paulo, 1992.

DANIÉLOU, Jean e MARROU, Henri. Nova História da Igreja. Editora Vozes. 2 edição. Petrópolis, 1973.


[1] Clemente de Alexandria: Stromata; PG 8, 718-719.
[2] Nunes, Ruy Afonso da Costa: História da Educação na Antiguidade Cristã; São Paulo, EPU-EDUSP, 1978; pg.123.

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