sábado, 22 de novembro de 2008

O Ser de Aristóteles

Introdução

Ao longo da história, a existência dos seres sempre despontou como um dos grandes mistérios da humanidade. Por que existe algo em vez de o nada? O que faz com que se formem as estrelas, a árvore, o homem? Qual é, enfim, a essência do ser?”São perguntas que apesar dos avanços da ciência, continuam a desafiar a mente de filósofos, físicos e biólogos”. Em busca de respostas a essas questões, o homem produziu grandes obras. Uma delas é a Metafísica, do filósofo grego Aristóteles e o seu conceito do “Ser”. Analisaremos este conceito a luz do pensamento Aristotélico.

1. Metafísica

O termo metafísica não é aristotélico; o que hoje chamamos de metafísica era chamado por Aristóteles de filosofia primeira. Esta é a ciência que se ocupa com realidades que estão além das realidades físicas que possuem fácil e imediata apreensão sensorial.

No começo de sua metafísica (título dado a uma coletânea de obras aristotélicas que havia na antiga biblioteca de Alexandria, e que significa “os trabalhos que vêm depois da física”), Aristóteles indaga, como um dos problemas a serem abordados, se poderá haver uma ciência geral do “ser enquanto ser”, bem como ciências particulares relativas a isto ou aquilo.

Poderá haver simplesmente uma ciência do que é, uma ontologia geral? Uma opinião que ganhou certo curso em tempos recentes é que, inicialmente, Aristóteles pensou que a resposta a essa questão era não, mas que, finalmente, veio a julgar que era possível responder à pergunta com um sim qualificado. Foi um sim que tornou a ciência do “ser enquanto ser” idêntica à teologia, a despeito do fato de que esta parece, à primeira vista, tratar de um único tipo, mesmo que seja um tipo supremamente importante de ser.
O conceito de metafísica em Aristóteles é extremamente complexo e não há uma definição única. O filósofo deu quatro definições para metafísica: 1) a ciência que indaga causas e princípios; 2) a ciência que indaga o ser enquanto ser; 3) a ciência que investiga a substância e 4) a ciência que investiga a substância supra-sensível.

Os conceitos de ato e potência, matéria e forma, substância e acidente, possuem especial importância na metafísica aristotélica.

2. O “Ser” de Aristóteles

Num mundo em que o universal não subsiste por si próprio, formado apenas por coisas individuais concretas, como seria possível conhecer, visto que as coisas individuais concretas são em número infinito? A resposta estaria na indução, onde o indivíduo, partindo do particular para o universal, procura agrupar um conjunto de elementos comuns em grupos e classes de coisas, para classificá-las e conhecê-las. [1] Assim, ao observar uma variedade enorme de cachorros particulares, o homem abstrairia o comum entre eles para criar o conceito de cachorro. Tal conceito existiria apenas no logos, na linguagem e intelecto humanos.
O objeto de investigação da metafísica não é qualquer ser, mas do “ser enquanto ser”. Esta investigação levaria à elaboração de uma ciência suprema, superior a todas as outras. Esta ciência já estaria sendo feita, apesar de ainda existir de forma crua. Aristóteles fala da importância da causa desde a filosofia anterior. Os filósofos hoje ditos "pré-socráticos", procurando explicar a existência física do mundo, teriam considerado apenas a causa material em sua formação [2] , ao passo que Aristóteles aponta a existência de outras três, a eficiente, a formal e a final. As quatro causas seriam quatro sentidos de responder à pergunta por quê? E encontrar o que é primeiro em algo, e conhecer o que lhe é próprio, seus atributos essenciais, opostamente aos atributos acidentais.

As quatro causas citadas aqui, foram lembradas apenas para mostrar que a causa em Aristóteles é o que contribui para o conhecimento do Ser. A ciência superior do “ser enquanto ser”, portanto, seria também a ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas. Delimitar os contornos desta ciência [3] , é o que é tratado na metafísica.

Um atributo essencial é essencial porque é aquilo que esta numa coisa que é, que, se não estivesse, a coisa não seria. Essência é uma palavra de origem latina (posterior ao grego, portanto). A palavra que isto traduz é o termo grego “ousia” que mais literalmente significa "o que é por si mesmo", ou seja, o que é primeiro numa substância, não podendo ser tirado desta sem que o ser perca o ser.

Além do ser em si mesmo, Aristóteles distingue ainda outros três sentidos principais em que se diz que uma coisa é, a saber: por acidente, como verdadeiro e como falso e em potência e em ato. [4]
O ser acidental pode ser dito como verdade, mas não uma verdade necessária ou habitual, e sim contingente. Por exemplo, pode-se dizer: "O arquiteto é músico". Ser arquiteto não implica necessariamente em ser músico, mas no entanto esta proposição pode ser verdadeira, visto que uma coisa é acidente de outra. O logos para saber o que é ser músico não passa pelo logos de saber o que é ser arquiteto.

O ser como verdade implica aceitar que dizer que uma coisa é aceitar que ela é verdadeira, ao passo que dizer que uma coisa não é, é dizer que ela não é verdade, isto tanto na afirmação como na negação. Assim, como explica Aristóteles, tanto a afirmação de que Sócrates é músico e não pálido deve ser verdadeira, ao passo que a proposição "Sócrates não é pescador" deve ser falsa. O ser como verdade e falsidade está ligado, portanto, à lei de não contradição que Aristóteles formulou.

A "metafísica" não estuda o ser [5] como acidente nem o ser como verdade. O primeiro não pode receber nenhum tratamento científico, pois existem infinitos atributos acidentais. Uma casa, exemplifica o filósofo, pode ser agradável a uns e não a outros. A ciência arquitetônica não visa estes atributos acidentais, mas a essência da ciência da construção arquitetônica é apenas a construção de receptáculo para abrigar móveis e seres viventes. [6]

O ser como verdade não é estudado pela metafísica porque este pertence não a objetos, mas a estados de espírito. Tal estudo caberia mais à lógica do que à metafísica. Os outros dois sentidos, o ser como essência, que subsiste por si mesmo, o qual diz que uma coisa é propriamente, e o ser em ato e potência serão tratados pela metafísica.
Aristóteles afirma que as individualidades do ser em si são em número igual às figuras de predicação. Ou seja, alguns predicados indicam o que é no sujeito. Estes predicados podem ser expressos nas categorias de qualidade, quantidade, relação, atividade, passividade, lugar e tempo. Explicar as categorias é tarefa melhor empreendida nos escritos analíticos e nas categorias. Para nós, o mais importante é saber que a substância é a categoria primeira no que diz respeito ao ser.

A substância é anterior as outras categorias por existir à parte (como coisa individual), por ser anterior à definição das outras categorias, e por ser anterior no conhecimento. Ou seja, a substância é anterior no logos (na definição, pois ao definirmos as outras categorias precisamos definir uma substância ao mesmo tempo, ou seja, as outras categorias dependem dela), na ordem de conhecimento (conhecemos melhor uma coisa ao saber o que ela é, mais do que sabendo suas qualidades, quantidades, etc.) e no tempo (a substância é anterior às outras categorias que subjazem a ela). [7]

A substância é aquilo "que não pode ser afirmado de um sujeito, mas aquilo de que todo o resto é afirmado". Ou como afirma Aristóteles, é em virtude da substância que as outras categorias também são.

Para responder à questão do que é a substância, Aristóteles identifica pelo menos quatro sentidos para a palavra: a essência, o universal, o gênero e o substrato. Abstraindo as diversas afecções e diferentes categorias, tirando todas as determinações da substância restaria apenas a sua matéria “hylé” o que leva Aristóteles a considerar uma definição de substância como matéria. Mas isto seria insatisfatório, visto que "tanto a separabilidade como a propriedade de ser uma coisa determinada são atribuídas principalmente à matéria". [8]

Mas a substância não é a ausência de determinações, visto que tudo o que é, é um isto, ou seja, algo determinado. Para resolver este impasse, Aristóteles introduz o seu conceito de forma “eidos”, Aristóteles define forma como a essência de cada coisa e a sua substância primeira. Aristóteles afirma que a substância é matéria sem essência.

O indivíduo é para Aristóteles composto de forma e matéria. Existe uma distinção entre substância primeira e substância segunda que foi muito desenvolvida pelos escolásticos. Para resumir, podemos dizer que a substância primeira é sujeito do qual se afirmam ou se negam diversos predicados, e que não é ele mesmo predicado de nada, e a substância segunda é uma abstração, o tipo geral que caracteriza uma classe de objetos, como os termos gerais "homem e cavalo". Mas esta substância segunda só pode ser chamada substância por analogia, visto que nenhum universal pode ser verdadeiramente um ser.

Assim, a substância seria um composto de forma e matéria. A matéria, por exemplo, seria o bronze, e a forma seria a forma da estátua de bronze. Esta resposta parece ser a mais satisfatória para a pergunta "o que é substância?".

O ser de Platão é imutável. Aristóteles, para resolver esta contradição, introduz a noção de potência e ato. É certo que a matéria está em constante devir, sempre mudando. Um bebê nasce e se modifica até o fim da vida, não deixando nunca de ser uma substância. Isto acontece porque o ser pode ser em potência, antes de ser em ato. O ato pode ser o exercício da atividade, esta podendo ser atividade tendo em vista um objetivo específico, como a construção de uma casa, ou atividade em si mesma, como o pensamento, ou a forma.

A matéria aspiraria à forma, se transformando sempre ao mudar de forma e se realizar como atualidade. Esta atualização é feita pela causalidade, mais especificamente pela causa final, que rege a atualização da potência de um ser.

A mudança da potencialidade se transformando em atualidade demonstra a primazia da atualidade. Como exemplifica Ross, o animal tem a faculdade de ver a fim de poder ver e não vê a fim de possuir a faculdade de ver. Mas o argumento principal apontado por Ross da maior importância da atualidade é o seguinte: o que tem potência de ser também tem potência de não ser, enquanto o eterno nunca pode deixar de ser. [9]

Estas mudanças estariam restritas às substâncias individuais. A teologia aristotélica, afirma que toda mudança é regida por uma finalidade tendo em vista um bem. O mal não teria existência necessária no mundo, pois ele está mais ligado à potencialidade, visto que é possível, em potência que o mal e que o bem existam, mas em ato só é possível um dos dois existir (pois dois contrários não podem existir em ato, segundo a lei da não contradição). O mal não existe à parte das coisas más, porque sua potência é superior ao seu ato, enquanto nos seres eternos não pode haver nenhum mal, visto eles estarem sempre em ato.

A mudança da matéria ao se tornar forma diria respeito apenas ao mundo sublunar, de substâncias constituídas das quatro raízes, dos quatro elementos. Além destes elementos adotados por Empédocles, haveria, no mundo supra lunar uma quinta essência, chamada éter, que seria a matéria dos astros e estrelas. A mudança nos mundos seria regida pela substância pura, o motor imóvel do mundo, que move sem ser movido, visto que é puro ato, e imutável porque não muda. Aristóteles chama esta substância pura de Deus, e diferencia-se das formas platônicas por ser capaz de causar o movimento. [10]

Para ser eterna, esta substância é imaterial. Portanto, as características básicas da ruptura de Aristóteles com Platão, o desenvolvimento da concepção de ser aristotélico e os quatro sentidos em que este pode ser dito, até achar a substância como a categoria que melhor expressa o ser, sendo esta um individual composto de Forma e Matéria.

Aristóteles jamais diz que há realmente uma única coisa. Nem tampouco que há apenas um único tipo de coisa. Nem mesmo Platão disse que havia realmente apenas Formas. Havia um mundo sensível, mesmo que ele fosse uma mera cópia, e defeituosa, por falar nisto, do mundo ideal. No fim, a concepção de Aristóteles sobre a relação entre o mundo e Deus não difere da de Platão sobre a que existe entre mundo e Formas. Tão pouco isto deve surpreender, considerando-se o longo período que Aristóteles passou na Academia.

Conclusão

Neste breve estudo do “Ser” de Aristóteles, vimos que a metafísica aristotélica tem as seguintes funções: investigar as causas e princípios primeiros ou supremos, investigar o ser enquanto ser, investigar a substância, investigar Deus e o supra sensível. Aristóteles conclui que quem investiga as causas primeiras, costuma chegar num impasse que só pode ser entendido pela existência de um Ser Divino, supra-sensível, que não é causado por nada, que é a causa de si mesmo. O ser como verdade implica aceitar que dizer que uma coisa é aceitar que ela é verdadeira, ao passo que dizer que uma coisa não é, é dizer que ela não é verdade, isto tanto na afirmação como na negação.

Para Aristóteles existe um Deus, não humano. Era contrário, portanto ao antropomorfismo. O Deus seria responsável pelos primeiros movimentos, a sua fonte. Ele é pura energia, incorpórea, indivisível, assexuado, sem alteração, eterno e perfeito. É autoconsciente então não faz coisa alguma, sua única ocupação é contemplar a essência das coisas, pois ele próprio é essência. Ou seja, ele pensa e contempla a si mesmo. Ele não pensa os mortais, pois o conhecimento das vicissitudes mortais, seria, (se existisse) aos olhos de Aristóteles uma limitação de Deus.
Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES, Metafísica. Editora Globo de Porto Alegre, Biblioteca dos Séculos, tradução de Leonel Valandro, 1969.
_______, Ética a Nicômaco. in coleção Os Pensadores. Volume Aristóteles. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borhein. Editora Abril. São Paulo, 1973.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução de Mário da Gama Kuri. Editora UnB. Brasília, 1977. Segunda edição.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e crítico de filosofia. Diversos tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.
ROSS, sir W. David. Aristóteles. Tradução de Luiz Felipe Ferreira. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1987.


[1] Aristóteles, Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. Volume Aristóteles. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borhein. Editora Abril. São Paulo, 1973.
[2] Lalande, André. Vocabulário Técnico e crítico de filosofia. Diversos tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.
[3] Ross, sir W. David. Aristóteles. Tradução de Luiz Felipe Ferreira. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1987.
[4] Esta argumentação está no livro V, capítulo 7 da Metafísica. A edição usada foi a da editora Globo de Porto Alegre, Biblioteca dos Séculos, tradução de Leonel Vallandro, 1969.
[5] Aristóteles, Metafísica. Editora Globo de Porto Alegre, Biblioteca dos Séculos, tradução de Leonel Valandro, 1969.
[6] Ibid, p, 84
[7] cf. ROSS, op. cit., pg. 172.
[8] Laêrtios, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução de Mário da Gama Kuri. Editora UnB. Brasília, 1977. Segunda edição.
[9] ROSS, op. cit. Pg., 183
[10] cf. ROSS, op. cit., pg. 186

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